O fenômeno de política de massas que ficou conhecido no registro historiográfico e na terminologia das ciências políticas sob a alcunha de populismo está longe de ser um fenômeno simples e isolado, e segundo alguns pesquisadores, extinto. Suas raízes históricas se encontram ligadas a um momento e uma conjuntura política particular que traziam circunstancias jamais vivenciadas.
Desde já deixamos claro que, para além da conotação negativa que o termo assumiu com o passar das décadas, a política de massas talvez não represente algo execrável por natureza. Iremos tratá-la como uma resposta a questões desafiadoras que urgiam ser resolvidas sob a pena do colapso social haja vista a emergência das massas e a necessidade de integra-lá aos processos políticos e de produção num processo latente de urbanização e modernização da sociedade.
Os traços recorrentes à maioria da produção bibliográfica relacionam o populismo aos momentos de crise de uma ordem tradicional, onde há a necessidade de modernização da sociedade e não há grupo capaz de empreender tal tarefa. A ausência ou escassez de canais de agregação de interesses e de participação classista permitem então a ascensão de líderes carismáticos que utilizam as massas disponíveis para sustentá-lo conciliando os interesses envolvidos. Em qualquer de suas formas, o populismo necessita de alguns elementos básicos para se concretizar. Independente das particularidades das ocorrências, ele surge quando há uma massificação de amplas camadas da sociedade que desvincula os indivíduos de seus quadros sociais de origem e os reúne na massa, relacionados entre si por uma sociabilidade incompleta.
No Brasil da década de 30 a crise oligárquica abre espaço para a emergência dos grupos populares. Esses grupos, genericamente chamados de massas, são mostrados como se fossem homogêneos, turvando as divisões sociais e econômicas e criando a idéia de povo como unidade, como uma comunidade de interesses solidários. No populismo, a relação de classes muitas vezes se caracteriza como relações entre indivíduos, justificando o pouco interesse dos lideres populistas de oferecer às massas condições de se organizar.
Sérgio Bezerra avalia que em 1930 a expressividade política do povo brasileiro era pouco desenvolvida. Os índices de desigualdade eram altos e em decorrência disso largas parcelas da população buscava, apenas, garantias de vida mínimas. A já citada quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque gerou uma crise econômica e social sem precedentes e representou um marco da ruptura da ordem tradicional.
Nesse contexto Getúlio Dornelles Vargas, latifundiário, bacharel em Direito, oriundo de família de políticos gaúchos surge como liderança capaz de empreender um plano para a nação. Cria e projeta sobre o povo a imagem de pai dos pobres. Empreende uma legislação social que aparentemente protege os trabalhadores, promove a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943 e, também, para os deserdados, estende o assistencialismo da Legião Brasileira de Assistência (LBA), despertando nas massas o sentimento de gratidão e admiração.
No entanto, Vargas não deixa de privilegiar a burguesia urbana em ascensão. Com efeito, ele conseguiu, com razoável sucesso, romper as barreiras da estagnação e abrir caminho para a modernização da sociedade brasileira conciliando a burguesia industrial e o operariado urbano e ainda, alguns grupos oligárquicos rurais. Octavio Ianni atribui à política de massas papel fundamental no processo de industrialização. A intenção era incorporar as massas criando as condições para o acumulo e desenvolvimento capitalista.
Com a expansão da indústria e a intensificação do processo de urbanização, alimentado por crescente êxodo rural, verifica-se acelerado crescimento das classes populares e do operariado urbano. Assim, são as classes urbanas que se tornam ativas em suas reivindicações sociais e políticas. E é principalmente para elas que se volta, na sua dimensão social e política, a atenção do governo. Nas palavras de Weffort:
“Desde a crise de 1929, que desarticula o velho capitalismo agrário voltado para a exportação e desde a revolução de 1930 que rompe a hegemonia das oligarquias rurais – a cidade vem progressivamente oferecendo as condições econômicas e políticas para a proposição do conjunto dos problemas do país. Nestas circunstâncias, as populações urbanas representariam no conjunto do povo o contingente politicamente decisivo” (Weffort 1989).
Há um crescimento acelerado das classes médias, dos trabalhadores urbanos e das massas populares marginalizadas, com aspirações gerais e específicas – tudo num clima de crescente efervescência. A inexistência de uma classe hegemônica, ou de uma aliança de classes suficientemente estruturada, abre espaço e caminho para a implantação da ditadura estadonovista – um poder superior, forte e centralizado, como instrumento para conter os excessos, arbitrar inapelavelmente os conflitos de interesses e traçar as regras de convivência da sociedade e os rumos do país.
A critica de Octavio Ianni condensada na obra O Colapso do populismo no Brasil (1967) atribui à política de massas a criação das condições institucionais, políticas e culturais indispensáveis para a criação de uma população urbana e industrial durante um dos principais períodos da industrialização brasileira (1914 – 1964). Segundo o autor nesse período, sobretudo depois de 1945, as massas passaram a interferir em certa medida na política nacional (IANNI 1994)
O resultado foi o surgimento de novos modelos de desenvolvimento e organização econômica. Em 1954 a tensão entre o modelo nacionalista baseado na política de massas e aquele que preconizava a associação com a economia capitalista internacional foi tal que levou ao suicídio Vargas, representando a vitória do segundo modelo. A morte de Vargas na visão de Ianni representa o ápice do período histórico que contextualiza a democracia populista.
A política de massas foi a razão do getulismo e posteriormente seu próprio fim, uma vez que as forças favoráveis a associação com o capital estrangeiro elevaram as pressões sobre o governo culminado na morte do presidente da república. Contudo, a política de massas não foi totalmente extinguida. As bases populares continuaram a representar o sustentáculo dos governos que se seguiram, mas agora as exigências do capital foram sendo cada vez mais observadas. Diferentemente de 1930 quando o que estava em jogo eram os interesses entre grupos dominantes, o que vemos a partir de 1945 é a realização da revolução democrática onde o que importa e cortejar as massas (Weffort, 1989).
No seio desse conturbado momento Juscelino Kubistschek assumiu a presidência da republica brasileira balizado pela necessidade de observar as contradições que levaram a queda de Vargas. Assim foi forçado a promover uma abertura ao capital internacional. Contudo, não abdicou das bases populares e manteve em grande medida a política de massas. As forças favoráveis a internacionalização não puderam, ainda, suplantar a democracia populista definitivamente.
Urdida na Era Vargas, principalmente na fase estadonovista, as concepções varguistas ainda encaminhavam as questões políticas, econômicas e sociais do período que vai de sua deposição, em 1945, à de João Goulart, em 1964. Na avaliação de Ianni os governos seguintes de Jânio Quadros e posteriormente de seu vice João Goulart embora marcadamente populistas, não conseguiram restaurar o modelo getuliano em sua integridade. Tinham a sustentação política, mas faltava o apoio das camadas industriais, cada vez mais desaforáveis aquele tipo de política. As tentativas de reforma executadas por Jango levaram ao golpe de 64, esse sim suplantou o populismo clássico de uma vez por todas.
Para os intelectuais brasileiros, o fenômeno populista consistiu, uma etapa no processo de transformação da sociedade brasileira, marcado pelo incremento da urbanização e da industrialização. A industrialização substitutiva de importações, orientada pelo Estado, o nacionalismo e a oposição ao imperialismo e a oligarquia seriam alguns dos traços mais expressivos do fenômeno populista, que consistia numa coalizão policlassista, na qual os interesses da burguesia prevalecem.
Um elemento muito recorrente nessas análises clássicas é a percepção de um suposto caráter imaturo e inconsciente do proletariado urbano, sendo tal peculiaridade o principal fundamento para entender o apoio popular às lideranças populistas. Sem lideranças e instituições que efetivamente representassem os seus interesses, o operariado urbano estaria submetido a uma relação personalista, irracional, demagógica e emocional das lideranças populistas, visto que os sindicatos, seus órgãos de representação e organização, estavam atrelados ao e tutelados pelo Estado.
De forma resumida a política de massas foi uma forma de organização política das classes trabalhadoras, visando o seu controle mediante a força do estado para garantir a industrialização. Octavio Ianni sustenta que a política de massas além de ser um desdobramento dos acontecimentos políticos que conduziram gradualmente a uma ruptura entre a sociedade tradicional e a emergente sociedade urbano-industrial, bem como serviu a uma reformulação do sistema político e das relações externas. Devido a essa característica de funcionar como uma possibilidade de reformulação da sociedade e dos vínculos nacionais é que a política de massas reaparece entre os anos de 45 a 64.
Embora muito se diga quanto à sobrevivência da política de massas em formas neo-populistas, a política populista com características claramente demarcadas ficou para trás no decurso do tempo. Dizer que temos hoje governos populistas é com certeza um abuso em relação ao limites do termo e serve apenas para obscurecer o debate político, pois o termo fora de sua dimensão justa mais confunde do que esclarece. Condenar toda política social como populismo é uma extrapolação do conceito feita no sentido de denegrir adversários políticos, identificando-os com o que há de pior no populismo como a demagogia.
E desnecessário dizer que os interesses ligados às camadas detentoras dos meios de produção são sempre observados com mais atenção. Além disso, muitas vezes, a exemplo de Getulio Vargas, os governos populistas assumem a forma autoritária sem que haja, no processo decorrente, espaço político para que evolua a livre representação dos interesses de classe. Contudo, a condenação sumária não serve a uma reflexão que se propõe ampla e esclarecedora.
CAPELATO, M. H. R. 2001. Populismo latino-americano em discussão. In : FERREIRA, J. (org.). 2001. O populismo e sua história – debate e crítica. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira.
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GOMES, Ângela de Castro. O populismo e as Ciências Sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito. In: FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
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WEFFORT, F. 1989. O populismo na política brasileira. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Ricardo Maciel
"Dizer que temos hoje governos populistas é com certeza um abuso em relação ao limites do termo e serve apenas para obscurecer o debate político, pois o termo fora de sua dimensão justa mais confunde do que esclarece."
ResponderExcluirEsse é um trecho que eu gostaria de destacar, porque, além de apontar para o fato de que o populismo serve como conceito apenas à sua época - o que impossibilita seu uso para o quadro atual -, também deixa claro que o populismo é apenas uma das formas possíveis de suspensão da política. Isso nos deixa já diante do problema central, que me parece ser aquilo que movimenta o seu texto, qual seja a contínua suspensão da possibilidade de exercício político para o povo, o que impede sua libertação do quadro histórico e até mesmo institucional (a CLT prova isso) que o domina.
Por isso, não podemos mesmo dizer que temos hoje o populismo e dizê-lo não eclareceria nada. Mas me parece que o que precisa ser acentuado é que, seja através do populismo ou não, o povo continua sendo subjulgado além de estar até hoje sensivelmente desorganizado. Faltam canais decisivos de exercício de poder!
Por isso gostaria de terminar o comentário com um clamor:
REFORMA POLÍTICA JÁ! Mas não essa que o congresso já promete há tanto tempo, e sim uma reforma que parta da própria sociedade civil. Difícil, sim. Mas enquanto for uma possibilidade permanece sendo o motor de toda intenção honesta e libertadora na política.
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ResponderExcluir"Sérgio Bezerra avalia que em 1930 a expressividade política do povo brasileiro era pouco desenvolvida. Os índices de desigualdade eram altos e em decorrência disso largas parcelas da população buscava, apenas, garantias de vida mínimas"
ResponderExcluirO que ainda acontece... A grande diferença é que à época do populismo, o Estado privilegiou as massas de alguma maneira institucionalizando direitos básicos inexistentes a época, o que até certo ponto favorecia a industrialização capitalista.
Hoje, além do pouco desenvolvimento político do povo brasileiro, o Estado já não consegue encontrar maneiras de prover o bem estar da população que não vão de encontro a economia capitalista. Qualquer esforço nesse sentido tem de ser feito com o uso do capital privado, que detem praticamente, todos os meios para convencer a massa do contrario. Com o argumento de quanto menos Estado (impostos, servidores, gastos da máquina pública em geral) mais progresso. Vimos a grande mentira desse argumento com a recente crise financeira mundial: Estados intervindo forte na economia!
Estaríamos sob a égide de um nova forma de populismo alienante?
Ao meu ver, o "consumismo" é a nova forma que Executivos-Generais das grandes corporações encontraram para alienar as massas sob o pretexto de inseri-las no mercado de consumo, assim como o populismo brasileiro as alienou sob o pretexto de inseri-las no mercado de trabalho através do Estado forte, protetor e integrador.