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domingo, 19 de setembro de 2010
Raízes da impunidade (Colônia e Império)
Faz-se aqui um breve histórico sobre a impunidade no Brasil nos períodos coloniais e imperial. Com objetivo de demonstrar que o fenômeno alopoiético do sistema penal não é recente, tão pouco exclusivo do sistema jurídico brasileiro ou dos países subdesenvolvidos, mas sim um fenômeno que atinge qualquer sistema cujo código binário luhmanniano (licito/ilícito) é fundido a outros sistemas sociais.
Exemplifica-se que tal intricamento de códigos ocorria com extrema freqüência pela falta de efetividade das punições criminais no período pré-republicano, não obstante a severidade extrema das Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas, Filipinas) em sua parte penal, vigentes aqui até 1830.
A pena de morte, por exemplo, era estabelecida para a maioria das infrações penais. Como lembra António Hespanha[1]: “conta-se que Frederico o Grande, da Prússia, ao ler o Livro V das Ordenações, no século XVII, teria perguntando se em Portugal havia gente viva”.
Porém, ressalta Hespanha, que o direito penal no Antigo Regime, em termos de punição efetiva, era praticamente ausente. A falta de efetividade[2] se dava por vários fatores, a começar pelos “conflitos de competência”, que prolongavam infinitamente os processos até questões de natureza prática, como a deficiência logística e a incapacidade de controle, por exemplo, do cumprimento da pena de degredo no ultramar. O historiador sustenta que até a pena de morte, de aplicação momentânea, era, estatisticamente, muito pouco utilizada em Portugal. (CARVALHO FILHO, 2004).
Outro aspecto importante da não-efetividade do direito penal escrito no período era o caráter massivo da política de perdão[3], decorrente de necessidades conjunturais – como o esvaziamento de cárceres – e da própria legitimação ideológica do poder real.
O degredo para o Brasil, depois estabelecido formalmente como pena criminal e aplicada em escala importante pelos tribunais civis de Portugal era medida severa.
No período em que o território brasileiro foi divido em capitanias hereditárias os governadores e seus ouvidores dispunham do poder de julgar escravos, o “gentio”, “peões e cristãos e homens livres”, até em caso de “morte natural”, mas a necessidade do povoar era imperiosa.
A instalação do governo-geral, em 1549, revogou, em parte, o poder judicial racionado entre os donatários. Com a fixação de uma autoridade suprema, Tomé de Souza, seu corregedor, pôde ingressar nas diversas capitanias e, assim, distribuir justiça. Capistrano de Abreu (1976, p. 45) explica que “estando as capitanias na condição de estados estrangeiros relativamente às outras, impossibilitava-se qualquer ação coletiva: os crimes proliferavam na impunidade, a pirataria surgia como função normal”.
O projeto era estabelecer na colônia uma organização mais vigorosa, centralizada, “forte bastante para garantir a ordem interna”.
Os relatos da administração Tomé de Souza indicam que ele exerceu o poder de punir conforme as conveniências do momento. Ainda no ano da fundação de Salvador, morto um colono por um índio e exigida a entrega do “criminoso”, este, por ordem do governador-geral, foi amarrado à boca de um canhão e atirado “pelos ares, desfeito em pedaços”. O simbolismo do ato seria captado por Robert Southey (1981, p. 169): “Mais humano para o padecente, mais terrível para os espectadores, não há suplício imaginável. Encheu de terror os Tupinambás e foi útil lição aos colonos(...)”.
Porém, para dois franceses presos no sul do país, em 1550, por contrabando de pau brasil – atividade que a Coroa considerava intolerável –, o futuro seria diferente. Em carta ao rei, Tomé de Souza se justificaria depois: “Não os mandei enforcar porque tenho necessidade de gente que não me custe dinheiro”, ressaltando, no entanto, que “daqui por diante se fará o que Vossa Alteza mandar”. O ferreiro, “hábil homem”, fazia “bestas e espingardas e todas as armas”, e o outro, que era “língua”, ficou “aferrolhado” a um “bergantim” (MAGALHÃES, 1999, p. 15).
A partir do exame da aplicação formal da pena de morte, para crimes comuns (em contraposição a delitos militares, políticos e religiosos), é possível verificar a não-efetividade do direito penal no Brasil, tal como escrito nas leis.
Com a efetiva instalação do Tribunal da Relação na Bahia, no século XVII, essa perda de poder e de efetividade punitiva seria ainda mais acentuada – seja pela distância entre o local do crime e o local da punição (Salvador), seja pelas delongas burocráticas. Em 1616, um alvará reduziu para dois, excepcionalmente, o número de votos necessários para a confirmação das sentenças de morte na Relação: é que, desfalcado o tribunal, os réus permaneciam longos períodos nas cadeias à espera do veredicto.
Havia também uma aparente insegurança institucional. A Coroa foi consultada sobre a condenação à pena de morte, pelo Tribunal da Relação, de dois franceses e de dois ingleses, presos em Ilha Grande, capitania do Rio de Janeiro, por tráfico de pau brasil.
A resposta (1614) foi um inequívoco puxão de orelha nos magistrados, por “haverem dilatado a execução”. Lisboa ordenou “que para o diante se não faça mais”, mas, paradoxalmente, comutou a pena de morte dos quatro estrangeiros “em degredo para sempre nas galés” (CARRILO, 1997, p. 329). A impossibilidade de aplicação da pena de morte nas próprias capitanias incomodava as autoridades locais e era considerada fator de incentivo à criminalidade.
O processo de colonização do Brasil permitiu que, sobretudo nos centros políticos periféricos, se formassem núcleos de mandonismo e redes de proteção que, na prática, inviabilizavam a aplicação da lei penal. Frei Vicente de Salvador relata as dificuldades encontradas pelo quarto governador-geral, Luis de Brito, para efetuar a prisão (ordenada pelo rei de Portugal) de um homem, “aliás honrado e rico”, mas que “era cruel em alguns castigos que dava a seus servos fossem brancos ou negros”, protegido pelo bispo D. Antônio Barreiros (SOUTHEY, 1981, p. 183).
Três séculos depois, Nabuco de Araújo, ministro da Justiça do imperador Pedro II (1853-1857) estaria empenhado em uma autêntica cruzada contra o poder paralelo profundamente enraizado, disparando cartas aos presidentes das províncias, ora reclamando de um crime de morte praticado por uma “famigerada família” da Paraíba e da “indiferença da autoridade”, ora incentivando os sinais de “energia” com que se perseguia o crime em Alagoas, ora orientando-os a não terem escrúpulos de algum excesso que pudessem cometer.
Seu biógrafo e filho, Joaquim Nabuco (1997, p. 323), registra:
A indiferença da população diante dos crimes mais atrozes, a convivência de todos com criminosos de morte, o sistema de vingança, o bárbaro feudalismo, que transforma o morador em “capanga” ou em “espoleta” do potentado local, colocavam a sociedade em muitos pontos do interior em uma espécie de estado de sítio permanente. Nabuco por vezes esboçara na Câmara esse quadro de impunidade, a sobranceira das influências que se encastelavam nas suas propriedades e desafiavam a justiça que lá não ousava penetrar.
Durante o Império, são editados no Brasil o Código Criminal (1830) e o Código de Processo Criminal (1832).
Quanto ao primeiro, pode-se observar, partindo da análise feita por Carneiro Campos (apud LEAL, 1922, p. 1.143), que:
O Código antigo era monstruoso, era cruel, era inexeqüível, e por essa razão é que muitas vezes os criminosos ficam impunes. [...] Eu estive na Relação, vi muitas vezes que em regra era "morra por ele" e nós nos lançávamos, portanto, num sistema oposto de que resultava uma espécie de arbitrariedade nos juízes.
Assim, para evitar a crueldade da lei, recorriam os juízes, a expedientes constantes para não aplicar tais penas.
Não fosse o paradoxo da escravidão, da pena de açoite, poder-se-ia dizer que adotamos um regime punitivo tecnicamente liberal. A incidência da pena de morte foi drasticamente reduzida (apenas para casos de homicídio, latrocínio e rebelião de escravos), as execuções passaram a ser realizadas de forma austera, sem o espetáculo da mutilação e da exposição do cadáver, com os julgamentos se efetivando por um conselho de jurados formado por doze cidadãos, todos “eleitores” (o que, na época, significava dispor de poder econômico) e de “reconhecido bom senso e probidade”.
Aliás, os argumentos para a manutenção da pena de morte no Código Criminal do Império, após intenso debate político, foi a própria escravidão e a necessidade de produzir exemplos. O pronunciamento de Paula e Souza (apud RIBEIRO, 2000, p. 123) na Assembléia Legislativa é revelador:
Quem duvida que tendo o Brasil três milhões de gente livre, incluídos ambos os sexos e todas as idades, este número não chegue para arrostar dois milhões de escravos, todos ou quase todos capazes de pegarem em armas! Quem, senão o temor da morte, fará conter essa gente imoral nos seus limites? A experiência tem mostrado que toda vez que há execuções em qualquer lugar do Brasil, os assassinos e outros crimes cessam, e que ao contrário, se se passam alguns anos sem execuções públicas, os malfeitores fazem desatinos e cometem todo o gênero de atrocidades. Daqui se vê que essa pena é eficacíssima.
Observa-se que, castigo existia, sobretudo para índios, escravos e peões. O pelourinho, símbolo da justiça, era monumento obrigatório nas vilas e muita gente permaneceu presa, indefinidamente, à espera de julgamento, em uma época em que a prisão, especificamente, não existia na lei como pena.
[1] António Manuel Botelho Hespanha (Coimbra, 1945) é um historiador e jurista português.
[2] Uma carta régia de D. João V ao corregedor do crime (a redação do documento é atribuída ao ministro e diplomata brasileiro Alexandre de Gusmão) explicitou, em 1745, como orientação, a não-efetividade das Ordenações: “(...) as leis costumam ser feitas com muito vagar e sossego, e nunca devem ser executadas com aceleração, e... nos casos crimes sempre ameaçam mais do que na realidade mandam (...)”.
[3] Era da tradição portuguesa que o instituto do perdão fosse utilizado para fins de povoamento. Vilas como Marvão, Sabugal e Miranda, em algum momento, foram declaradas locais de refúgio, coutos, onde criminosos foragidos podiam se instalar, sem temor da justiça.
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O nosso velho ditado serve como comentário deste texto: "Cadeia é para pobre!"
ResponderExcluirJá vimos com Foucault como a punição se tornou algo quase natural que hoje é um instrumento de poder que não precisa mais se justificar. O direito do Estado de punir seria justo e legítimo, porque se está defendendo o bom funcionamento da sociedade. Será?
O que não se questiona é se todos são de fatos punidos, o que o seu texto mostra claramente que não. No fim voltamos ao nosso velho problema. Porque até mesmo o Estado está nas mães daqueles que oprimem o povo, parece mesmo que o povo jamais conseguirá se livrar deste jugo.
Mas como nos disse uma vez Hanna Arendt, a esperança é o que mantém viva a política. Ela alimenta nossa ação. Mas ainda não podemos negar que só são punidos aqueles que são impedidos de seus direitos desde o princípio: o povo!